26.4.06

 

Evocando António José Saraiva sobre o 25 de Abril

Mão inesperada trouxe-me à lembrança um artigo polémico de António José Saraiva sobre o 25 de Abril, na minha opinião, o texto mais contundente que alguém, insuspeito de simpatias pelo anterior regime, alguma vez escreveu sobre esta data memorável da nossa História recente.

Na altura em que o artigo veio a público, 26 de Janeiro de 1979, animado do atrevimento da juventude, discordei bastante dele, pelos termos demasiado crus que António José Saraiva empregava e por achar generalização exagerada na atribuição de culpas, designadamente aos militares.

Já conhecia, então, as qualidades intelectuais de AJS, reputado Professor Universitário, com larga obra publicada, mas não tinha a noção exacta da sua enorme categoria moral, que, depois, por diversas vezes, em variadas circunstâncias, pude, pessoalmente, comprovar, nomeadamente, quando AJS se dispôs a debater publicamente, no Centro Nacional de Cultura, o teor do artigo, que, compreensivelmente, levantara a ira dos militares do MFA, nele especialmente visados.

Num ambiente de grande exaltação e hostilidade para com a sua pessoa, com a presença de figuras gradas do MFA, nesse tempo ainda com bastante influência no poder em Portugal, AJS compareceu ao debate, repetiu e sustentou as críticas que havia formulado no artigo do Diário de Notícias.

A sua figura franzina, a sua fraca voz, quase de falsete, escondiam, no entanto, uma forte, indomável personalidade de intelectual probo e independente. Personalidade vincada que, mais tarde, haveria de levá-lo a rejeitar uma condecoração do Presidente da República, com base, se não erro, no argumento de que não reconhecia ao Estado competência para julgar comportamentos morais dos cidadãos.

Que eu saiba, foi das raríssimas pessoas, em Portugal, onde tantos se atropelam para abichar Comendas e Medalhas, sem que nada de especial tenham feito para as merecer, a assumir este gesto de invulgar desprendimento, bem demonstrativo da sua austera independência de espírito. Fazem-nos hoje imensa falta figuras públicas deste gabarito, capazes de oferecer aos seus concidadãos exemplos de elevada dimensão ética.

AJS era, na fase em que publicamente o conheci, um livre-pensador, diria mesmo, um filósofo, de alta credibilidade intelectual e moral. Desligado de forças políticas e partidárias, nos últimos anos de vida retirado do proscénio mediático, cada vez mais desconfiado do tecido partidário nacional, enfrentando animosidades e até desconsiderações, permaneceu sempre um interessado e lúcido observador da nossa realidade cultural, social e política, emitindo opiniões desassombradas, numa linguagem clara, sem lugar para ambiguidades.

Vale a pena ler tudo o que este notável Homem de Letras escreveu sobre Portugal e a Cultura Portuguesa; em particular, a colectânea de artigos de intervenção cívica reunida em livro editado pela Bertrand, em 1980, sob o título, carregado de simbolismo, «Os Filhos de Saturno», livro precioso, de inteligência e de coragem, a reclamar urgente reedição, para ser colectivamente lido e meditado, para nossa comum edificação e permanente memória.

Neste autor, hoje estranhamente pouco lembrado, apreciamos, com sumo regozijo, um pensamento próprio, profundamente original, expresso com mão de Mestre, num português claro, simples, fluente, de vocação didáctica, muito agradável de ler.

Em muitos dos artigos e crónicas da referida colectânea, podemos aquilatar a visão premonitória de AJS sobre a nossa realidade política, presentemente tão criticada, perigosamente desacreditada, desmotivando imensa gente de nela participar, arredando-a irremediavelmente, com prejuízo de todos, das tarefas urgentes de uma premente reabilitação nacional.

Quando se editam largos milhares de livros em Portugal, sobre os mais variados assuntos, alguns perfeitas inanidades, de quem mal sabe escrever, porque diabo ninguém se lembra de reeditar «Os Filhos de Saturno», ainda mais, tendo já sido editado pela Bertrand, uma grande editora nacional, que tem arrecadado pingues proveitos com os Códigos de Da Vinci e outras historietas fantasiosas apresentadas como versões históricas de grande rasgo inventivo ?

Prouvera que alguém tivesse a louvável iniciativa de reeditar este admirável conjunto de textos, cheios de doutrina e reflexão, de um dos mais insignes pensadores portugueses do século XX.

AV_Lisboa, 26-04-2006

------------------------------------------------------------------------------------------------

Transcrevo a seguir o célebre texto de António José Saraiva, publicado no Diário de Notícias de Lisboa, em 26 de Janeiro de 1979.

« O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA
António José Saraiva_Diário de Notícias_26-01-1979

Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.

Na perspectiva de então, havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime.Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes : o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro «Portugal e o Futuro», do general Spínola, que tivera a aceitação nacional, e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada, ordenada e honrosa.

Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.

Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas. Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo, nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato, que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar.

Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários».

E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização, num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército, para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige, em grau elevadíssimo, o moral da tropa. Neste caso, a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram, conscientemente, a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que, nas circunstâncias do momento, eram puramente criminosas.

Isto quanto à descolonização, que, na realidade, não houve. O outro problema era o da liquidação do regime deposto. Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo, que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial : impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos.

Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. Em qualquer caso, já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outros talvez piores os vieram desculpar.

Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril.

Havia, também, um malefício imputado ao antigo regímen, que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto, lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados.

Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regímen, como não se fez a descolonização. Uns homens substituiram outros, quando os mesmos não substituiram os mesmos; a um regímen monopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista».

Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior, mais a vergonha da deserção.

E, com este começo, tudo foi possível depois, como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquios, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas confessos e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão, pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio «honesto» de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.

Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobre uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só, todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro.

É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente.

Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente. »

Fim de transcrição -----------------------------------------------------------------------------

25.4.06

 

Saudação de Abril

Para assinalar a data que hoje se comemora, quase mítica já para o Povo Português, pretendo deixar aqui um breve testemunho :

De gratidão, em primeiro lugar, aos revolucionários de 1974, pelo risco assumido e pela determinação demonstrada; em segundo lugar, com mágoa, quero confessar quanto me pesa a actual situação em que o País se encontra e as ameaças que sobre ele pairam.

Embora as culpas pela presente situação, caibam aos Portugueses, no seu conjunto, porque têm continuamente legitimado, com o seu voto, a acção dos Políticos que os têm governado, a verdade é que têm sido estes e não a massa do Povo a tomar as decisões que influenciam a vida dos cidadãos e o futuro da Comunidade, como Nação e Estado desde há muito soberanos.

As iniquidades do anterior regime já não atormentam a nossa cidadania, nem a sua eliminação, tardia, porventura incompleta, hoje basta ao nosso desejo de afirmação colectiva, como Nação antiga, orgulhosa das suas distantes glórias.

Os anseios que a Revolução despertou, os sobressaltos que se viveram, por tentativas várias da sua perversão, estão hoje misturados num sentimento de orgulho e de frustração, sendo que este último começa a sobrepujar o primeiro.

Para as novas gerações, as comparações que possamos estabelecer, pouco lhes dizem. Habituadas à normalidade democrática, não têm paciência para relatos históricos para velhas e, agora descabidas, execrações a inimigos desaparecidos.

Esperam um país exequível, organizado, limpo da corrupção ou, pelo menos, não enlodado por ela, com uma Justiça eficaz no combate a essa chaga, sem exigir o paraíso na terra, obviamente, porque a natureza humana, como por demais sabemos, é muito claudicante ante o vício e a ilicitude.

Gostariam certamente as novas gerações de herdar um País com uma Economia estruturada, com os seus sectores equilibrados, com um Sistema de Ensino eficiente, capaz de formar cidadãos, técnica e culturalmente apetrechados, aptos a defendê-lo, como Entidade soberana entre as demais, no espaço político-económico em que nos inserimos e no qual temos de nos confrontar com parceiros muitas vezes falhos de solidariedade e de compreensão para com as nossas debilidades.

Gostariam de acreditar que estamos criando um Sistema de Saúde e de Assistência Social assente na entre-ajuda dos cidadãos, em que os que mais podem contribuem com mais para os que menos podem, fórmula afinal simples de definir o conceito de solidariedade social, tão difícil de alcançar quando imperam as visões exacerbadas de individualismo e concorrência, frequentemente, nem sequer leal, muito menos sã.

Nestes desideratos, as gerações que fizeram e prosseguiram o 25 de Abril devem sentir-se comprometidas, reconhecendo o seu exíguo êxito colectivo.

Trinta e dois anos depois, continuamos na cauda do desenvolvimento económico da Europa dos 15 e perto da dos 25; somos, neste grupo, o país de maior desigualdade na repartição de riqueza; temos um dos mais ineficientes e caros Sistemas de Ensino, uma Economia crescentemente desequilibrada, deficitária em sectores fundamentais da nossa sobrevivência.

Nunca isto será de mais repeti-lo, para ver se ganhamos consciência do trabalho imenso que temos pela frente. Esta é a condição inicial para o ingente processo de regeneração a que estamos colectivamente obrigados.

Impulsionados pelo patriotismo são, lúcido para a realidade circundante, mas exigente e afirmativo, sem receio de o mostrar, com sentido de solidariedade e de justiça, afastando responsáveis corruptos e incapazes, premiando quem possui valor intelectual e cívico, com determinação, ganhando competências que nos faltam, com desejo de honrar os compromissos assumidos, no respeito da memória dos que aqui nos antecederam, sob este exigente influxo ético-cultural poderemos, com certeza, vislumbrar um futuro para Portugal.

Eis o que se me oferece dizer, neste dia, para muitos de luminosa esperança, como para a minha saudosa Mãe, já partida do nosso convívio, que sempre comemorava esta data, para o meu sofrido Pai, felizmente vivo, mas impossibilitado de o festejar, como certamente para uma imensa multidão de nossos compatriotas, uns já esmorecidos, amargurados pelas decepções entretanto colhidas, outros ainda perseverantes nos ideais primitivos, a todos endereço uma saudação de esperança e de ânimo para que, solidariamente, ergamos Portugal desta nova « apagada e vil tristeza» em que ele, hoje, outra vez se encontra.


AV_Lisboa, 25 de Abril de 2006

20.4.06

 

JPP Toma Dores Alheias

José Pacheco Pereira deve andar com falta de assunto para as suas crónicas semanais no Público.

Hoje, ocupou-se extensamente com «a fauna das caixas dos comentários», segundo a sua azeda terminologia.

É certo que ela existe, mas, a ele, a fauna tem-no incomodado muito pouco. No Abrupto, ela não o pode fazer e, nos outros seus dois blogues mais conhecidos, o Veritas Filia Temporis e o dos Estudos do Comunismo, que eu me lembre, sempre que os visitei, nunca por lá a encontrei.

Pergunta-se então : porque estará JPP tão agastado com a dita fauna ? A resposta requererá algum exercício psicanalítico.

Há tempos que JPP se viu ultrapassado em popularidade na blogosfera. Bastou a entrada abrupta de Vasco Pulido Valente para lhe roubar os louros mediáticos. Este e a sua parceira, Constança Cunha e Sá, depressa o desbancaram da posição cimeira, deixando-o muito para trás nas visitas quotidianas e mais ainda no número de comentários suscitados, a ele, que era um veterano do meio, com direito a corte e séquito permanentes !

VPV conseguiu, em pouco tempo, ofuscar JPP na internet, entre outras razões, porque é também muito conhecido na Comunicação Social, que, aliás, frequenta ainda há mais tempo que JPP; além disso, é arguto, escreve bem, possui uma cultura filosófica, histórica, política e literária fora do comum e, talvez mais importante ainda, não poupa figuras, nem instituições, quando aparelha o seu terrível arsenal de crítico mordaz. Por isso o desalojou tão prontamente do trono internético.

Agora, que o Espectro terminou a sua actividade, qual fogoso cometa, pode JPP voltar a sonhar com a sua antiga relevância bloguista. E algum ciúme JPP deixa perceber, ao mencionar os 484 comentários da caixa do Espectro, na inesperada saída de cena deste blogue. Compreende-se a sua irritação, pelo imediato contraste que aquele volume de comentários estabelece com o escassíssimo número que aqueles seus dois parentes do Abrupto, acima referidos, costumavam atrair.

Paciência, caro JPP, um dia tal haveria de suceder. Não adianta, por isso, ir buscar remédio na fustigação da «fauna das caixas dos comentários». Ninguém reina eternamente, muito menos na blogosfera, nesta era da mui cortejada fama, tão retumbante quanto efémera.

JPP, bastamente versado em Filosofia, deveria sabê-lo melhor que qualquer obscuro argumentador, seu contendor e crítico neste bastante democrático meio, pese o enfado que tal condição lhe cause...

AV_Lisboa, 20 de Abril de 2006

18.4.06

 

Meditação Pascal

Passou mais uma Páscoa, perdõe-se-me o pleonasmo, pelo remoto sentido religioso do termo, dominada pela febre das mini-férias, do descanso, da fuga para o campo ou para a praia, numa cada vez maior ansiedade de nos furtarmos ao frenesi urbano : falso, fútil, todavia absorvente, esgotante.

Parece que a cidade cada vez nos cansa mais e, no entanto, fora dela, a presença humana rareia, a actividade económica diminui, deixando largos espaços com escassa utilização, quase só reanimados em período de férias ou aos fins de semana.

O nosso querido Portugal, na sua parte mais viva, assemelha-se a uma faixa progressivamente adelgaçada, a caminho da dimensão linear. Ainda há anos se falava na concentração de cerca de 90% da sua actividade económica numa faixa litoral de 50 Km de largura.

Entretanto, a referida faixa ter-se-á reduzido ainda mais, emagrecendo o país até um ponto próximo do desespero, pelo definhar da Economia, pelo enfraquecimento da pouca Indústria remanescente, pelo depauperamento da Agricultura, pela debilitação do sector pesqueiro, ou seja, das bases da nossa autonomia, como Nação e como Estado, soberano entre os demais.

Perante a situação igualmente desanimadora dos restantes sectores, como a Justiça, a Saúde e a Educação, com que esperança olhamos nós, hoje, para o nosso periclitante Portugal ?

Lá veio de novo o Relatório do Banco de Portugal reavivar-nos a memória da presente desgraça colectiva, confirmando que não há sinais de retoma, prolongando-se a estagnação, aumentando a nossa distância da média europeia dos 15, com a ameaça de sermos ultrapassados pelos restantes 10 mais recentes parceiros da União Europeia.

Tudo isto acontece quando se aproxima a data comemorativa dos 32 anos da Revolução do 25 de Abril, uma reminiscência já das doces esperanças então abraçadas.

Dirão alguns que não há motivos para tal desespero : abundam nas ruas das cidades e nas auto-estradas do País os Mercedes, os Audis, os BMW, crescem os condomínios privados de luxo, surgem iniciativas empresariais, OPA, fusões, aquisições várias, parcerias, anima-se a Bolsa, sobem os índices, aumenta a confiança no País, como reza a florida prosa governamental.

Porque nada disto nos transmite a tão desejada confiança ? Porque permanecemos incrédulos ? Porque cada vez nos parece mais fictícia, mais misteriosa esta nossa aparente prosperidade ?

A Páscoa é, para os crentes, um momento de renovada esperança na vida, porque nela Cristo triunfou da morte, ressuscitou, voltou à vida, como havia prometido durante a sua pregação. Isto é dito, repetido há dois milénios, mas o seu Reino continua por se realizar e não se vê que para lá as coisas se encaminhem.

Pelo contrário, os sinais sombrios acumulam-se, com as notícias do contínuo aumento do preço do barril de petróleo, logo aproveitado pela Empresas Petrolíferas para de imediato elevarem o preço dos combustíveis, todas em cartel mal dissimulado, embolsando lucros apetitosos, pelas diferenças dos preços das suas anteriores aquisições no Mercado, dito de futuros, certamente negros, como o petróleo e os horizontes que se perfilam para grande parte da Humanidade.

Que grande trabalho esta terá pela frente, para lograr o seu pedaço de conforto ! Que falta fazem hoje os portadores de esperança, os convictos dos seus ideais, os de prática coerente com a doutrina preconizada ! Que se passou nos últimos três decénios para nos termos tornado tão cépticos ?

Envelhecemos, está visto ! Mas e os mais novos : porque não os vemos entusiasmados com utopias ? Porque só os vemos preocupados em chegar rapidamente ao Mercado para assegurarem a sua parte no festim consumista ? E porque procedem eles assim ? Que valores, que doutrinas, que exemplos lhes inculcámos nós, os mais velhos ?

Oxalá estivesse errado, injustificadamente lúgubre, neste meu amargo pedaço de crónica !
Só mais um esforço, Portugueses ! Acreditemos em algo de válido : na Vida, na Pátria, na Espiritualidade - com ou sem ligação religiosa -, na História, no Trabalho, na Criação de Riqueza, na Ciência, no Amor, na Solidariedade, na Família, enfim, em qualquer ideia-força que nos impulsione, que nos leve para a frente, para resgatarmos Portugal do presente poço de amargura em que caiu e do qual tanto nos está a custar tirá-lo...

Outra vez a Esperança, a Índia, o Mar, qualquer coisa destas, clamemos, à maneira do nosso imenso Pessoa, espírito grandioso, brilhante, igualmente tão dado a estes pensamentos, ainda que de forma mais poética, artística, sublime, que, para isso, o Criador o havia dotado !

AV_Lisboa, 18 de Abril de 2006

6.4.06

 

O Eduquês em França e em Portugal

O tema do Ensino tem sido bastante debatido nos últimos anos na generalidade dos meios de comunicação social. Na semana passada, em particular, o Expresso trazia um artigo sobre «O Eduquês», jargão largamente incompreensível para o comum dos mortais, mas linguagem doentiamente preferida dos putativos peritos em Educação.

Esta verdadeira novi-língua, de ressonância orwelliana, tornou-se numa espécie de cortina de fumo, atrás da qual se pretende esconder os tremendos fracassos das sucessivas reformas educativas que, afanosamente, peritos e Governos, um pouco por todo o lado, têm produzido, sem se preocuparem com os desastrosos danos entretanto causados a um dos principais pilares da constituição de um País ou Comunidade : o seu Sistema Educativo.

Nesse artigo de Guilherme Valente, editor da Gradiva, que recentemente publicou um livro de Nuno Crato, com aquele mesmo título, «O Eduquês», figurava um extenso extracto de um depoimento de um matemático francês, Laurent Lafforgue, deveras contundente para os responsáveis do Sistema Educativo vigente em França.

Laurent Lafforgue é um investigador matemático, ainda jovem, com 39 anos, de alta reputação internacional, tendo ganho diversos prémios importantes, entre eles o da Medalha Fields, em 2002, prémio para investigadores em Matemática, equivalente, em prestígio, ao Prémio Nobel das demais Ciências.

Segundo ele próprio confessa, numa das suas intervenções mediáticas, nunca se imaginou especialista do Ensino e, só recentemente, há cerca de dois anos, começou a dedicar a sua atenção ao assunto. Como sabemos, para compreender um assunto qualquer é preciso que primeiro para ele dirijamos a nossa atenção. Foi o que ele fez.

Mas, justamente porque veio de fora, sem ideias pré-concebidas na matéria, pôde olhar para os problemas típicos do actual Sistema de Ensino com inteira liberdade e objectividade, para lhe perceber as teias e as falsas ideias em que ele se enredou de há décadas a esta parte.

Vale a pena ler alguns dos seus artigos disponibilizados na internet. Não porque contenham matéria absolutamente nova, visto que há lustros, pelo menos, muita gente, em muitos outros locais, vem dizendo o mesmo ou coisas idênticas, sem obter com isso relevante sucesso, apesar do relativo impacte social.O choque que os seus escritos causaram levou a que tivesse sido convidado, pelo Presidente da República para o Alto Conselho da Educação de França, instância que, supostamente, vela pela qualidade e pela eficácia do Sistema Educativo naquele país.

Surpreendentemente, a permanência de Laurent Lafforgue naquele órgão foi de curtíssima duração, tendo apresentado a sua demissão escasso tempo decorrido após a sua auspiciosa entrada, por, supõe-se, absoluta incompatibilidade de opiniões e pontos de vista aí encontrados. Os peritos, corporativamente ali alojados, prontamente rejeitaram aquele que era o portador de pensamento divergente, ficando, com a saída de Lafforgue, com a tarefa muito mais facilitada, sem contestação interna.

Em Portugal, coisa semelhante aconteceu, por exemplo, com Maria Filomena Mónica, quando, no início de 1997, no Semanário «O Independente», publicou uma série de artigos sobre os Exames e o Ensino, em geral, de forte efeito polémico. Mais tarde, mas ainda nesse mesmo ano, os artigos surgiram refundidos e aumentados, em livro, com o título de «Os Filhos de Rousseau», da editora Relógio de Água, salvo erro.

Na altura, muita gente se incomodou com a linguagem aberta e acerba de MFM, que, farta de tanta justificação ideológica sobre o assunto, decidiu passar a análises factuais, comparando os programas e os exames de várias disciplinas pertencentes ao final do Secundário dos anos de 1960 e 1996.

As comparações – são odiosas, dizem os ingleses – foram muito desfavoráveis ao actual Sistema de Ensino, menos exigente em matéria de rigor, mais reduzido em conteúdo programático e, sobretudo, as provas eram avaliadas com muito maior generosidade.

Mesmo assim, os resultados das provas de 1996 eram francamente maus. A atribuição de culpa tornava-se inescapável. Para o evitar, havia que transformar tudo numa discussão primordialmente ideológica, assim se poupando a responsabilização dos putativos peritos, autores das famigeradas reformas.

E foi o que grandemente sucedeu. MFM foi acusada de quase tudo, desde elitista, de defender o regresso ao passado, até de pouco menos que fascista, ou seja, o costume quando se pretende intimidar o interlocutor, inibir a sua argumentação mais letal, por isso mesmo, inaceitável para a nomenclatura reinante, que teme os factos, mas adora o debate ideológico, onde tudo assume um diferente significado.

Nesta arte são hábeis e desenvoltos os demagogos, sendo difícil derrotá-los. Além do mais, dominam as tribunas e os fóruns onde há muito criaram cumplicidades várias, contando com um coro de apoios previamente garantido que rapidamente se mobiliza em socorro dos pares. Basta que nos lembremos da repercussão ainda que tardia, entre nós, do debate das Guerras das Ciências.

Em pouco tempo, os adeptos do relativismo pós-moderno se alinharam na resposta à corajosa investida do Prof. de Física, António Manuel Baptista, que escreveu dois pequenos livros, também na Gradiva, sobre a influência nefasta daquela corrente de pensamento da Sociologia e da Filosofia, na credibilidade da Ciência.

Estranhamente, António Manuel Baptista ficou praticamente isolado, sem a solidariedade dos seus pares do sector das ciências e das técnicas, perfeitamente intimidados com a linguagem e a ousadia dos relativistas, chefiados pelo Prof. Boaventura Sousa Santos, de Coimbra e, claro, também pelo infalível, o omnipresente Prof. Eduardo Prado Coelho, no caso, senhor de uma linguagem de inusitada rudeza para com AMB, que, de resto, não lhe correspondeu na indelicadeza, mantendo uma contida postura no desenrolar do arremedo de debate a que então se assistiu.

Estes assuntos do colapso do Sistema de Ensino e das Guerras das Ciências estão intimamente relacionados. Os danos que a aliança da ultra-esquerda política com o relativismo pós-moderno dos intelectuais, franceses, sobretudo, tem produzido, na eficácia do Sistema Educativo está para lá de qualquer dúvida. E, se não for combatida, no plano das ideias, naturalmente, o seu efeito deletério continuará a multiplicar-se por muitos mais anos, porque ela já afectou o pensamento de gerações inteiras, em todo o mundo.

A defesa de um Sistema de Ensino Público de qualidade é essencial para a promoção de qualquer sociedade equilibrada. Neste desígnio deveriam estar reunidos todos os que prezam o bem comum, independentemente de preferências político-partidárias, hoje muito desvalorizadas, pela inconsistência dos credos e pela falta de credibilidade dos dirigentes das principais formações.

Para as camadas sociais de menores recursos, então, a falência do Sistema de Ensino Público será de consequências catastróficas, visto que de nada mais se hão-de valer, não podendo recorrer a Colégios ou a Externatos privados ou a Explicadores particulares, abusivamente caros, fora do alcance das suas parcas bolsas.

Não se percebe, por isso, porque tanta gente se desinteressou da luta por um Ensino Público de qualidade, com elevados padrões de exigência, base fundamental de uma cidadania consciente, activa e dinâmica, capaz de gerar sociedades economicamente mais prósperas e socialmente mais coesas.

Urge reacender o debate para fazer renascer esse interesse.

AV_Lisboa, 06 de Abril de 2006

This page is powered by Blogger. Isn't yours?